FOTO: Bandeira chinesa na Praça Tiananmen, fotografada em nove dias consecutivos de março de 2014, mostrando a variação dos níveis de poluição na cidade. Crédito: Reuters/Wei Yao
A poluição do ar em Pequim é pelo menos cinco vezes maior do que em Baltimore, perto de Washington, onde a cientista chinesa Ruiping Xiao passou 20 anos trabalhando para os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos. Ainda assim, ela não poderia estar mais feliz de ter retornado ao seu país para dar sequência às suas pesquisas sobre síndrome metabólica e diabetes. Atraída de volta à sua alma mater, a Universidade de Pequim (PKU), Ruiping “ganhou” não apenas um laboratório próprio para trabalhar, mas a oportunidade de construir um novo instituto de biomedicina inteiro, do zero.
Assim nasceu, em 2005, o Instituto de Medicina Molecular da PKU, que hoje abriga aproximadamente 200 pessoas, entre pesquisadores e alunos de pós-graduação, distribuídas em 12 laboratórios, 7 unidades de apoio tecnológico à pesquisa e um centro de criação de primatas. “E ainda temos muito espaço para crescer”, anima-se Ruiping, um mulher de modos e postura impecáveis. “A China está repleta de jovens talentos, muito bem treinados e altamente motivados. Temos muitos recursos humanos e muitos recursos clínicos, o que é ótimo para pesquisa.”
Ruiping é um dos muitos talentos internacionais da ciência que foram “repatriados” pela China ao longo das últimas duas décadas, dentro de uma estratégia do governo de Pequim para reforçar seu exército intelectual de pesquisadores e, com isso, agregar valor científico e tecnológico à sua economia. Os resultados são robustos e impressionantes, pelo menos do ponto de vista quantitativo. A produção científica da China deu um salto astronômico nos últimos dez anos, não importa qual seja a métrica usada para fazer a conta.
Segundo os indicadores mais recentes compilados pela Fundação Nacional de Ciência (NSF) dos Estados Unidos, o número de artigos científicos produzidos por cientistas chineses (sediados na China) aumentou de aproximadamente 21 mil em 2001 para quase 90 mil, em 2011 – um aumento de 325%. Com isso, a China saltou do oitavo para o segundo lugar no ranking internacional de países produtores de ciência, atrás apenas dos EUA (que publicaram 212 mil trabalhos em 2011). O Brasil, comparativamente, subiu apenas uma posição no ranking (de 17º para 18º), apesar de ter praticamente dobrado sua produção científica no mesmo período, de 7 mil artigos publicados em 2001 para 13 mil, em 2011.
Para ver o ranking global de publicações da NSF, baseado no Science Citation Index, clique aqui: http://migre.me/iVGDR
O novo relatório de Desempenho em Pesquisa e Inovação do G20, divulgado no início deste mês pela empresa Thomson Reuters, descreve o crescimento da produção científica da China como “a mudança mais significativa das últimas três décadas no cenário global de atividades científicas e publicações”. O número de trabalhos publicados por cientistas chineses em revistas indexadas na Web of Science, segundo o relatório, aumentou de 48 mil em 2003 para 179 mil, em 2012 (crescimento de 270%). A produção científica do Brasil, no mesmo período, aumentou de aproximadamente 15 mil para 35 mil trabalhos.
O relatório completo está disponível aqui: http://migre.me/iVGNB
(Os cálculos da Thomson Reuters utilizam critérios diferentes de contabilidade e uma base de dados mais ampla do que os da NSF, por isso a diferença nos números. Mas os cenários descritos pelas duas análises é essencialmente o mesmo.)
As áreas em que a China é mais forte, segundo a Thomson Reuters, são as das engenharias e ciências físicas, como química, física e matemática. As ciências biológicas, incluindo a biomedicina, não se destacam tanto – e foi por isso, entre outras coisas, que Ruiping decidiu voltar para casa. “A China avançou muito em ciência e tecnologia nos últimos dez anos; mas está muito atrás ainda no campo das pesquisas clínicas, aplicadas à saúde”, disse ao Estado a diretora do IMM, que estuda as relações genéticas entre síndrome metabólica, a obesidade e a diabetes. “Me senti na obrigação de voltar (para preencher essa lacuna).”
Bom negócio para todos
Outro pesquisador que pegou um avião de volta dos Estados Unidos para a China recentemente foi Wensheng Fei, de 45 anos, que desenvolve técnicas de edição genética aplicadas a microrganismos. Em 2007, ele deixou uma carreira de oito anos na Universidade Stanford para se tornar professor da Escola de Ciências da Vida da PKU. Além da abundância de jovens talentos citada por Ruiping, ele destaca a maior disponibilidade de recursos como uma das vantagens de fazer ciência na China. “É mais fácil conseguir dinheiro aqui”, diz Fei. “A economia está crescendo e há mais recursos disponíveis para pesquisa acadêmica; enquanto que nos Estados Unidos e na Europa isso está cada vez mais difícil. Mesmo bons pesquisadores lá tem dificuldade hoje para conseguir dinheiro.”
O fato de a economia e a produção científica da China terem crescido simultaneamente não é mera coincidência, segundo os analistas do setor. “O crescimento da China na publicação de trabalhos de ciência e engenharia é concomitante com o enorme aumento de seu PIB nos últimos dez anos; o que corrobora a conclusão de vários pesquisadores de que há uma correlação direta entre esses dois fatores”, diz o relatório da NSF.
“A economia cresceu e o governo, felizmente, reconheceu que a ciência é importante para apoiar a continuidade desse desenvolvimento”, concorda o professor Shu Tao, da Faculdade de Ciências Urbanas e Ambientais da PKU, que pesquisa a dispersão de poluentes atmosféricos e seus impactos na saúde humana – o maior problema ambiental da China, como se pode ver pela permanente “cortina de fumaça” que paira sobre Pequim e outros centros urbanos do país, às vezes impedindo que você enxergue prédios inteiros a poucos metros de distância. “Nos anos 1980, o governo mandou muitos estudantes para universidades estrangeiras; e agora esses recursos humanos estão voltando para a China, trazendo toda a experiência e as conexões que conquistaram nesse período para a ciência chinesa.”
Concomitante aos investimentos em pesquisa, o país também fez investimentos estratégicos em suas universidades de ponta, como a PKU a Tsinghua, que hoje figuram entre as melhores do mundo nos rankings internacionais (estão entre as 50 melhores no ranking do Times Higher Education, por exemplo). “Nossa missão é ser uma universidade de ponta mundial. Esperamos estar entre as 30 melhores nos próximos cinco anos”, afirma, sem modéstia, um dos vice-presidentes da PKU, Li Yansong. A prioridade número um para chegar a esse objetivo, segundo ele, são os “recursos humanos”: em resumo, contratar os melhores professores e recrutar os melhores alunos, onde quer que estejam.
Ranqueada como a melhor universidade da China, a PKU tem um orçamento de US$ 1,4 bilhão e investe fortemente no recrutamento de talentos chineses e estrangeiros para compor seus quadros. “É por isso que somos a número um da China”, diz o físico e também vice-presidente da universidade, Shiyi Chen – ele mesmo, recrutado da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, em 2007. “Buscamos atrair os melhores professores do mundo e, ao mesmo tempo, cultivamos os nossos próprios professores aqui dentro.” A meta, segundo ele, é contratar mais 400 a 500 “lideranças globais” para a PKU nos próximos dez anos. “Queremos mais professores internacionais”, diz Chen. “Isso é absolutamente crucial.”
Uma questão de impacto
Em termos qualitativos, a ciência produzida na China ainda enfrenta o mesmo problema da produzida no Brasil: a baixa relevância no cenário internacional, proporcionalmente ao tamanho de suas produções. Segundo as análises da Thomson Reuters, o impacto relativo da ciência chinesa dentro da produção global de conhecimento é 0,9 (um pouco abaixo da média mundial, 1) e o da ciência brasileira, 0,74. “O número de publicações da China é muito maior do que o nosso, porque eles têm muito mais cientistas, mas o impacto das duas ciências é semelhante; ambos abaixo da média mundial”, avalia o diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Carlos Henrique de Brito Cruz, que esteve recentemente na PKU participando de um encontro entre pesquisadores dos dois países (Fapesp Week Beijing).
A previsão da Thomson Reuters é que a China aumentará seu fator de impacto nos próximos anos, ultrapassando a média mundial e empatando nesse quesito com alguns países europeus. O fator de impacto do Brasil, por sua vez, manteve-se relativamente estável nos últimos dez anos – subindo, caindo, e depois retornando ao mesmo patamar. “Isso é comum entre as nações que aumentam sua produção científica rapidamente: primeiro constrói-se a capacidade de produzir, e o aumento do impacto desenvolve-se nas décadas seguintes”, diz o relatório da empresa, no capítulo sobre o Brasil.
Os desafios que os pesquisadores enfrentam para aumentar o impacto (relevância internacional) de suas pesquisas são semelhantes nos dois países. Entre eles, pode-se citar a burocracia excessiva e as dificuldades para importação de reagentes e outros insumos de laboratório – dois velhos inimigos da pesquisa acadêmica no Brasil, que o pesquisador Wensheng Wei diz enfrentar também na China. Os anticorpos que ele precisa para o dia a dia de seus experimentos têm de ser importados; consequentemente, custam muito mais e demoram muito mais para chegar ao seu laboratório na PKU do que levaria se ele ainda estivesse em Stanford. “Por isso que é tão difícil para a gente competir daqui; não porque somos menos competentes”, afirma Wei.
Outra reclamação que encontra eco entre os cientistas brasileiros é a maior dificuldade para publicar trabalhos em revistas de alto impacto, quando o nome da instituição que acompanha o do cientista situa-se fora do eixo Estados Unidos-Europa-Japão. “As revistas ‘top’ são muito críticas com os trabalhos que vêm da China”, diz Wei, que recentemente teve seu primeiro trabalho aceito para publicação na revista Nature, sete anos depois de ter voltado ao país. “É muito difícil para nós publicar nessas revistas. Você manda montes de dados, mas os revisores sempre pedem mais e mais.”
Pressão. O que pode ser um problema sério para os pesquisadores, que dependem da publicação de trabalhos nessas revistas de alto impacto para subir na carreira. Todos os cientistas chineses com quem o Estado conversou em Pequim confirmaram o que se costuma dizer sobre o ambiente científico-acadêmico na China: que a competição lá é ferrenha, inclusive entre os próprios chineses, e a pressão para publicar é enorme, com impactos diretos na carreira e no salário dos professores.
“É mais fácil conseguir uma promoção quando você publica numa revista grande”, diz o professor Shu Tao. Ele ressalta, porém, que há uma preocupação crescente por parte das instituições de valorizar também a qualidade das pesquisas, e não apenas a quantidade de trabalhos ou as revistas nas quais eles foram publicados. “Um pesquisador que não publica nada não é um bom cientista. Por outro lado, o fato de publicar numa revista de alto impacto não significa que o seu trabalho seja importante ou de boa qualidade, necessariamente”, pondera Tao.
Em sua apresentação da PKU, na abertura da Fapesp Week Beijing, o vice-presidente Shiyi Chen disse que a universidade publicou mais de 6 mil trabalhos em 2013, com um fator de impacto médio de 2,5. “Estamos preocupados não só com quantidade, mas com qualidade”, garantiu ele. Na sequência, chamou atenção para o fato de que 17 desses 6 mil trabalhos foram publicados nas revistas do “grupo CNS” (Cell, Nature e Science), tendo cientistas da PKU como autores principais. “Tem alguns trabalhos muito bons nesse grupo. Esperamos ganhar um prêmio Nobel um dia”, avisou Chen.
Estadão
0 Comentários:
Postar um comentário